Quem acompanha o futebol brasileiro com mais profundidade sabe da existência de jogos políticos e batalhas de bastidores: brigas por cotas de TV, por calendário, pela cor da grama (alô, Corinthians), entre outras questões. No entanto, é possível concordar que, disputas à parte, as disputas esportivas no futebol brasileiro normalmente ficam restritas… ao campo. Se você fizer mais pontos no campeonato brasileiro, você será campeão. Se ganhar todos os mata-matas, será campeão da Copa do Brasil, da Libertadores, da Sul-Americana e assim vai. Parece algo muito óbvio, né?
Acontece que, no College Football, as disputas políticas atingem outro patamar. Você já imaginou Flamengo e Palmeiras fazendo lobby político público para reivindicar uma vaga na Libertadores? Parece ridículo, né?
Pois bem: foi o que Alabama buscou fazer nas últimas duas semanas – e especialmente nos últimos dias – para reivindicar uma vaga no College Football Playoff, com direito a Nick Saban fazendo o papel de advogado da sua ex-faculdade ao vivo na ESPN americana e ao diretor esportivo de Alabamna, Greg Byrne, tomando nota da comunidade no X (ex-Twitter). Encantador e patético ao mesmo tempo.
Disappointed with the outcome and felt we were one of the 12 best teams in the country. We had an extremely challenging schedule and recognize there were two games in particular that we did not perform as well as we should have.
We have said that we would need to see how…
— Greg Byrne (@Greg_Byrne) December 8, 2024
Tudo isso ocorre graças ao fato dos classificados serem decididos por um ranking montado por um comitê de 13 pessoas que possuem uma simples missão: definir quem vai brigar por título nacional e quem vai jogar o Pop-Tarts Bowl.
Em 2023, eu defendi a entrada de Alabama no College Football Playoff sobre a invicta Florida State por um motivo: eram apenas quatro equipes na disputa, e não era aceitável gastar uma vaga com um time que estava com o seu 3º quarterback e não tinha nenhuma chance realista de ser campeã (por esse motivo, a minha tese sobre 2024 é diferente). O problema é que a decisão de colocar Alabama no playoff no ano passado trouxe consequências nefastas e muito pesadas, com torcedores de Florida State indignados com justiça e, principalmente, com a credibilidade do comitê sendo posta em xeque. Kirk Herbstreit, um dos comentaristas mais destacados da ESPN dos Estados Unidos sobre College Football, afirmou ter recebido ameaças de morte durante 8 meses por torcedores descontentes de FSU.
Esse clima de tensão e desconfiança foi carregado para 2024, ainda que o formato seja diferente e o número de equipes classificadas seja triplicado. Qualquer decisão do comitê de seleção do College Football Playoff nos primeiros rankings deste ano gerou uma série de questionamentos não apenas sobre as posições (isso sempre aconteceu, sejamos sinceros), mas sobre a própria integridade e a lisura do processo de seleção, o que diz muito sobre a crise e a pressão que o comitê encarou em 2024.
Nas semanas finais da temporada, a puxação de brasa (sobretudo a pró-SEC) se tornou ridícula. Alguns analistas, escritores e torcedores dos times desta conferência fizeram uma gritaria imensa quando Indiana perdeu seu único jogo na temporada (fora de casa para Ohio State) e pleitearam com uma força descomunal que os Hoosiers não fossem ao playoff; tudo isso para, no mesmo dia, Ole Miss e Alabama perderem pela terceira vez cada uma, com a Crimson Tide sendo amassada por 24-3 por uma fraquíssima Oklahoma.
Mais upsets vieram na semana seguinte (sobretudo os tropeços de Clemson e Miami) e Alabama até retornou ao páreo na semana final, assegurando o 11º lugar no ranking do comitê (à frente de Miami, outra polêmica) e garantindo, até aquele momento, a última das 7 vagas at-large (vagas destinadas a não campeões). Porém, Alabama ficava à mercê de algo que já é comum no March Madness no basquete universitário: um time de fora da zona de classificação poderia ser campeão de conferência e garantir uma vaga automática, roubando uma vaga at-large. Esse time era Clemson, que havia perdido para South Carolina e despencado nos rankings, mas que encontrou a bacia da sua salvação em Kyle McCord e uma Syracuse que derrotou Miami e colocou os Tigers na final da ACC. Caso Clemson vencesse, quem caía era quem estava mais na borda: Alabama seria puxada pra fora do playoff. A não ser que SMU, perdendo a final da ACC, terminasse o ranking final atrás da Crimson Tide.
Para isso, os Mustangs teriam que perder três posições, o que ia de encontro ao argumento que o próprio comitê havia dado em outubro deste ano, dizendo que não “puniria” vice-campeões de conferência – ainda mais num contexto onde as conferências eliminaram as divisões e quem chegava à decisão seriam os dois primeiros colocados de cada uma delas. Eu argumentei, no CollegeCast #209, que o pior cenário para Alabama seria uma vitória apertada de Clemson na final da ACC, já que os Tigers entrariam automaticamente, e isso, ao mesmo tempo, tornaria muito difícil, em termos de narrativa e de credibilidade ao College Football Playoff, tirar SMU para dar lugar a Alabama. E foi o que aconteceu. Clemson abriu 21-0 e chegou a vencer por 31-14, mas SMU reagiu de forma épica e empatou a 16 segundos do fim. Porém, Clemson conseguiu rapidamente alinhar seu kicker para converter um Field Goal de 56 jardas e devolver o troféu de campeão da conferência à cidade homônima.
Passado todo esse preâmbulo, vamos ao ponto central deste artigo.
Colocar Alabama no playoff em 2023 foi uma escolha política e econômica. Tirá-la em 2024 também é
Como pontuei nesta matéria na semana passada, havia três vagas em disputa nesta última semana: a do campeão da Mountain West, do campeão da Big 12 e a última vaga at-large. As duas primeiras vagas eram questão simples: venceu, levou. Boise State levou a Moutain West e Arizona State amassou Iowa State na final da Big 12. Restava em disputa a última vaga at-large, com todas as subjetividades possíveis e imagináveis para argumentar em favor de uma ou de outra.
Eu poderia aqui debater os trocentos argumentos a favor de SMU e de Alabama, como força de calendário, vitórias sobre times ranqueados, mas não farei isso. Vou para dois pontos mais importantes. O primeiro: SMU foi vice-campeã da ACC depois de fazer campanha 11-1 na temporada regular. Apenas Oregon, Texas, Penn State, Notre Dame e Boise State fizeram campanhas iguais ou melhores. É um contraste considerável com uma Alabama que teve altos e baixos, que deu vaga à Bowl Season para duas equipes (Vanderbilt e Oklahoma) e perdeu 25% dos seus jogos, ficando num modesto 4º lugar na SEC. E nem é possível argumentar que os coadjuvantes da SEC são melhores que os das demais conferências. Vanderbilt perdeu pra Georgia State, vice-lanterna da Sun Belt, e Oklahoma quase perdeu na semana 2 em casa pra Houston, um dos piores times do Power 4, e foi presa fácil dentro da SEC.
O segundo argumento, e esse o principal, é: uma decisão diversa da tomada neste domingo e o comitê corria o risco de ferir de morte o College Football Playoff de 12 times logo no seu 1º ano. Como é a edição inaugural do playoff expandido, a edição deste ano serve como modelo para classificar equipes entre as mais diversas conferências e montar os pesos (tanto de campanha quanto de tabela) para as próximas temporadas. Resumindo: o playoff de 2024 será a base, o alicerce, para os próximos anos. Depois do ocorrido em 2023, o comitê não podia se reservar ao direito de tomar outra decisão extremamente polêmica que poderia ter consequências políticas imprevisíveis. Restou tomar a decisão mais óbvia: classificar um vice-campeão de conferência em detrimento de uma marca poderosa, mas que não fez por merecer essa vaga no campo. Não em um playoff de 12 times, ao menos.
Pode ser que SMU não gere tanto interesse econômico (apesar de ser da cidade de Dallas) e não atraia tanta audiência quanto Alabama, mas é melhor perder dinheiro no curto prazo do que perder a credibilidade no longo prazo. Dinheiro se recupera rápido, mas credibilidade demora mais.
E é possível argumentar que a pressão feita por torcedores de Florida State e de outros programas fez diferença na escolha final, pois aumentou o preço político de uma nova predileção por Alabama – preço esse que o comitê não quis pagar.
O que Alabama quer com todas essas críticas?
Não deixa de ser irônico o fato da transmissão do Selection Sunday, da ESPN americana, ter dado a primeira palavra após o anúncio dos 12 classificados ao playoff para… Nick Saban. Acho dispensável citar o óbvio e latente conflito de interesses, com Alabama tendo direito a apresentar a sua versão em rede nacional para milhões de pessoas, enquanto SMU sequer fazia watch party para acompanhar os classificados com medo das consequências negativas em termos de imagem sobre uma possível não escolha – fruto, novamente, da nefasta decisão de deixar Florida State de fora do playoff em 2023.
Vou tentar não me estender nos argumentos ridículos dados tanto por Saban quanto pelo diretor esportivo de Alabama no Twitter, que argumentaram que “passa a não valer a pena agendar jogos contra times fortes”. Só reforça o quão impressionante é a audácia e a falta de noção: o calendário externo de Alabama em 2024 teve Western Kentucky, South Florida, Wisconsin e Mercer (FCS). Uma vice-campeã da Conference USA, a pior conferência da 1ª divisão, uma South Florida que mal pegou Bowl Season, uma Wisconsin 5-7 e Mercer… não há nem o que comentar. Cada conferência faz o que quiser da vida, mas vale ressaltar que a SEC é a única conferência que deixa uma data aberta na penúltima semana da temporada regular para que seus times agendem jogos extremamente fáceis antes da semana final. Esse sempre foi um fator de duras críticas por torcedores de times de outras conferências, mas ficava ofuscado pelo fato de que, nos momentos decisivos (playoff, bowls importantes e duelos entre conferências na temporada regular), os times da SEC realmente davam conta do recado.
Não foi o caso em 2024. Pela primeira vez em anos, viu-se uma SEC bastante mediana, com ataques voltando a produzir pouco e defesas novamente sendo dominantes. A final da SEC está aí para provar: Quinn Ewers e Carson Beck (e depois Gunner Stockton) tiveram um dia bem difícil e pouco produtivo. E se os dois melhores times da SEC foram nesse nível, quem dirá então sobre quem não foi. No caso de Alabama, todas as três derrotas foram para times da SEC: Tennessee, Vanderbilt e Oklahoma. Não há como enfraquecer ainda mais o calendário, a não ser que Bama resolva abrir mão do seu contrato milionário de TV e queira jogar na Sun Belt.
A verdade é que toda essa reclamação, que consumiu a mídia americana de domingo pra cá, não passa de mero blefe e jogo de condicionamento sobre o comitê para uma próxima edição. É possível que isso vire lobby político para expandir o playoff para 14 ou 16 times (ainda não há formato e nem número de participantes definido a partir de 2026) e também uma busca por mais favorecimento: o que a SEC mais pleiteia nesse momento, juntamente com a Big Ten, é garantir mais vagas automáticas para os seus times, independentemente da posição no ranking. ACC e Big 12 são as principais opositoras, já que estariam aceitando fazerem parte de um escalão inferior.
O que eu acho disso? Eu tenho uma sugestão de playoff para o futuro que poderia abarcar todas as conferências da 1ª divisão e tornar a classificação dos times menos dependente dos rankings. Mas isso fica pra outro post.